segunda-feira, 4 de maio de 2009

Nasceu às avessas, o pobre, o sentimento. E de tamanha estranheza, nem sequer ganhou um nome de batismo, como se tem direito. Existiu assustado sob os olhares: horas de alegria, horas de lamento. Vivia sob um espanto admirável, indefinido, inofensivo. Todos lhe conheciam, todos lhe tinham medo. De forma que, como uma regra instituída, por meio de uma convenção, ficou decidido que seu nome não viria pelo nascimento, mas sim, pela morte: “Se vinga nessa terra, é amor. Se morre, é paixão.”
Sim, é possível amar um carro. É possível amá-lo com tanta força que a ida ao cinema passa a ser uma busca obstinada no mapa da cidade. Qualquer vulto de cor cinza metálica, no meio de uma conversa, de um almoço, de uma confidência, de um trânsito atrapalhado pode lhe chamar mais atenção que um pedestre em agonia. E quanto sentimos o espichão do pescoço. Paro na sinaleira, fortuitamente olho para o meio fio e lá está: quanto amor estacionado entre a calçada e a vala. Todos os carros do mundo de fundo cinza metálico são o mesmo carro, são a mesma pessoa. São igualmente amados por amor de mulher. E há que protegê-los, de um esbarrão qualquer, de uma falta de vagas. Transitam pela cidade levando de um lado a outro sua saudade, o cheiro daquele encontro, histórias inteiras de tanto segredo transportadas em quatro rodas, duas portas e nada mais. Sempre o seguimos, pelo menos até a esquina ciumenta esconder ele para sempre. Para sempre naqueles 15 minutos. Porque em todo lugar que vamos, na frente do supermercado, na praia, até na farmácia por um analgésico. Sempre você, de fundos arredondados, pneus bem encaixados. Sempre o mesmo frio na barriga. Toda mulher sabe o que é se apaixonar por um carro. Por um carro assim você.