terça-feira, 7 de abril de 2009

Para que se escreva, viva. Dê a sorte de entre uma esquina e outra se apaixonar. Sem muito, sem razão. Para que se escreva, ame. E gire, e declare, com ou sem megafone na mão. Pra que se escreva, estenda a mão até sentir o calor da outra pessoa. Dê uma risada sem hora, que hora nenhuma é calculada nessa vida. Para que se escreva, solte: os braços, as pernas, o tudo, a imaginação. Para que se escreva, pare. Só para ver um pouquinho o sol se despedindo. Para que se escreva abrace, mesmo que à distância. Viva, mesmo que nos intervalos. Gaste, mesmo que conversa. E brinque e dance e seja. Deixe os pés livres. Siga amando a natureza ou respeitando a sua. Para que se ame. Para que se chore. Para que se pinte. Para que se ria. Para que se desça a montanha-russa. Para que se grite. Para que se escreva: sinta.
Desculpe a minha falta de vontade para a segunda-feira. Para o feijão marrom. Para a sinaleira. Para o nescau com pão. Perdoe essa minha insistência em abrir um buraco, e sair do outro lado da porta, do mundo, da rua. Ando desenhando em cima dos relatórios e das faturas de cartão. Ando dobrando canudos e fazendo esculturas com arame de biscoito. Olho para o relógio e não vejo sentido: quem deveria estar caminhando era eu, não ele, o ponteiro. Perdoe essa minha briga com o comum, talvez seja só preguiça pra fazer qualquer coisa que não dá vontade. Tudo na vida deveria ter entusiasmo. Eu sei que é um sonho, eu sei. Mas quão bem-feitos seriam os pães, as ligações, as entregas de pizza, as faixas pintadas no muro. Queria pôr um pouco mais de arte nos dias, porque arte é o espaço arranjado para a imaginação. Eu me alio aos cobradores de ônibus, que andam para os caminhos todos e não vão a lugar nenhum. Aos caixas de banco, que entregam dinheiro e quase nunca participam da realização dos sonhos. Aos vendedores de bala que não podem perder tempo sequer mascando chicletes. A eles, minha verdadeira solidariedade. Há que se ganhar a vida, eu sei. Mas há que se colocar mais vida no dia que se ganha. Interpelar as pessoas, conhecer, gostar do que ninguém gosta, fugir cinco minutos, parar pra ver uma reportagem na tv. E sonhar, como eu, que vai largar tudo para viver do que se tem vontade. Pode ser que não aconteça. Mas esses minutinhos – apenas sonhando- já vão fazer valer muito mais o seu dia.
Vamos fazer diferente então. Pipoca no alho, moqueca com pão. Vamos desligar os motores, soltar os braços, no meio do dia. Cruzar as águas, inventar os cabelos. Vamos fugir de noite sem dar explicação. Venha me pegar agora, sem demora, mesmo que eu não tenha avisado à direção. Deixe eu ouvir outra nota. Falar outra língua. Morar por um dia no país que eu criei. Deixe eu fugir da pressa, esquecer da rota, estender a conversa. Só hoje, cara pintada. Tinta nas bochechas, nada nos pés. Só hoje, deixe o sol nascer ao contrário, a carteira e as chaves no armário. Deixe o azul do céu te cobrir, e amanheça com a noite. Eu peço uma surpresa, uma gentileza, um brinde em cima da mesa, da vida. Quero sentir o que não conheço, me jogar no mar de madrugada. Só hoje não me chame pelo nome. Não me conheça. Deixe que eu seja. Deixe que eu seja. Inteiramente hoje, vem comigo, desobedeça.
Contra a dor, um remédio. Ainda que esteja na velha caixinha branca. Ou embaixo do cobertor. Para esse mal não há aspirina, nem operação. Mal que dói muito mais, que arde na alma, feito merthiolate. Vamos vivendo com a ferida aberta, ou com um ou dois pontos, mal cicatrizados. Vamos vivendo sufocados, às vezes anestesiados, doloridos, com falta de ar, bem embaixo do nó da gravata. Sofremos emergências médicas, quase vamos ao coma, e ninguém nem percebe, no silêncio dos elevadores. Caminhamos chorando, mas rimos para dar bom dia. Não saramos, mas repousamos, diariamente, olhando pra televisão. Ferida de alma mata. Dói até que se encontre uma razão, uma melhora, uma nova condição. Não se acha o diagnóstico fácil. Não sai o resultado nos exames de sangue nem no copinho da urina. No máximo, com a observação. Vamos vivendo arrastados. Esperando que um refrigerante limpe. Que um riso do outro lado da rua sopre, por um instante, o ardido do nosso coração.
Primeiro encontro. É a última página dos contos de final feliz. O primeiro gole do vinho. As palavras exatas peneiradas do dicionário. As promessas que nem precisam ser feitas. Os sorrisos que nem precisam ser convidados. Os olhares já completamente encostados. Os melhores beijos que ainda nem aconteceram. Os clássicos de cinema antes mesmo de serem lançados. Em uma versão com 30, 40 ou 10 minutos. Os palpites de dezenas de palavras não ditas. Os risos que quase fazem parte da música. O silêncio e o perfume. O fantástico instante vivendo entre o que nunca aconteceu e o que quer acontecer. Os passos de dança em perfeita sintonia, mesmo sem levantar. A história perfeita de um fôlego só. O homem de toda uma vida de um nome recente. A mulher que é sua, é a sua, e ainda não é. O fatídico encontro entre o que pede pra ser e o que não se diz. A história desconhecida onde já se conhece o final.
Sede recorrente. Tapeávamos o dia justamente com as horas. De vez em quando levantávamos os lápis, ou os olhos, como se pudéssemos suspender a cabeça o suficiente para ver o sol. Havia um ar frio, um ar condicionado, mas era como se, em dias assim, não houvesse ar algum. Os pés batiam no chão, as pálpebras insistiam em fechar, como se sonhando, pudessem dar à alma um pouco mais de liberdade. Era uma sala modestamente arrumada, mas parecia uma caixa, a sala de espera da vida. Cansávamos, mas fingíamos que não. Queríamos um pouco mais – mais cores, mais tempo, mais cheiro, mais emoção espremida desse dia – enquanto dávamos cinco passos inofensivos até o café. Nossos olhares, sempre por entre as telas, se encontravam. Mas era ele, o conhecido suspiro, que dizia todas as coisas. Aos nossos dedos, cabia a sina de caminhar pelas teclas. Mas as nossas almas, essas sim, corriam sem freio e sem rumo, misturadas ao vento.
Saudade. Ando sentindo falta de alguém que não existe. Alguém que já mora no meu peito, chegando às vezes a incomodar como inquilino. Já me acostumei a dividir com ele meus momentos a sós. A levá-lo para lugares que só eu gosto, que só eu sei. Quase sempre, em segundos tristes, ele está lá. Comecei a ter angústia, porque não podia falar. Não podia tirá-lo do meu peito e docemente me recostar em seus braços. Ficava sempre um vazio. Uma lembrança de algo conhecido que ainda nem começou. Ando com uma saudade enorme, quase um branco no meio do dia, de uma companhia oculta, tão familiar. Divido meus sonhos e já cheguei a sentir o seu beijo, chegando transparente no meu quarto. Só me resta pensar que se a saudade veio antes de tudo, é porque não sobrará mais espaço para ela, nem sequer por um minuto, depois do nosso encontro.
A paixão é um crime. Rouba à luz do dia a sua identidade. Cria para você uma segunda versão - que não chega a ser igual, nem tão pouco um irmão. Uma nova pessoa em sua pele. A paixão pede o que não se tem para dar. Cobra o que não se prometeu. Vende e anuncia o que nunca existiu. Quer os seus dias, sua horas, seus sonhos, seu silêncio. A paixão quer que você seja ela. É doce, mas é severa. É um mundo inteiro de amor, mas é sozinha. Manda como um pai e não passa de uma criança com os braços estendidos. Ama você. Mas nunca sabe de verdade quem você é.
Eu sou possessiva de natureza. Pidona de carteirinha. Enraivada instantânea, feito macarrão. Muitas vezes é só uma insegurança. Daquilo que já sei fazer. Daquilo que já conquistei. Às vezes é só amor. Amor que não quer acabar. Amor que não quer que acabe. Amor que andou em falta comigo mesma. Sou assim, vezes dia, vezes porta na cara. Vezes taça de vinho, vezes copo no chão. Uma hora amigo, outra hora solidão. O que me salva é esse bendito riso na cara, essa cócega crônica, achando graça do mundo. E essa paixão, tão simples e tão grande, que me dá vontade de agarrar tudo com as mãos. Não fosse isso, sei não.
Assim que sair esse aperto de mim, eu te prometo, amor, amor sem fim. Porque nem que eu tenha que arrancar, cuspir a dor, jogar pro ar, não permanecerá aí. Nem que alguém tenha que bater, desengasgar, nem que eu tenha que tomar remédio pra sarar, eu te prometo, amor, tirar daí. Porque é um encontro apertado, de palavra, sentimento, um vácuo, que achou de morar no meu peito. Volta e meia quando varro, corre pra varanda: garganta. E ainda assim, não vai, não se manda. Mas eu sinto amor, que está perto dela sair pra dançar. E quando a noite cair, e quando a calmaria chegar, eu prometo abrir a porta e escancarar o peito, e não faltará tempo, e não terá medo, e não haverá nada que me impeça de voltar. Eu serei livre, amor, eu serei vento, e esse sentimento, será pássaro a voar.
Um escritor é a asa. É o horizonte inteiro cabendo entre as pontas dos dedos.
Nasce sabendo que será sempre o tempo nublado e o início da chuva. Escritor é rio correndo, sem freio, sem pressa, sem razão. Escrever é só uma gentileza das palavras. Para desafogar o homem, para alimentar a vida. Um escritor é um sentir todinho, completo e pleno, ainda que sozinho. É ser o próprio tempo, sem dono, tão farto, tão seu, atravessando a vida e mudando o rumo das pessoas. Ser escritor é sentir o vento que sopra mansinho – só que dentro de nós.