domingo, 3 de maio de 2009

Tardes


Eu nem me lembro que horas eram porque as horas nem quiseram dizer nada. A graça era se perder no tempo. Meus olhos espalmavam feito folha de coqueiro e quanto mar havia, dentro e na beira de mim. Deitei meus pés sobre a areia e, naquele momento, minha alma era carinho para o mundo. Tão misturada estava que até meu fôlego tinha a pulsação da tarde. Foi a primeira vez que senti um silêncio que dança. Porque nada fazia movimentos bruscos, mas meus cabelos rodopiavam, anunciando a música que havia em mim. Deitei, para respirar na terra feito criança que se despoja no peito do pai. Derreti. Esqueci. Dormi. Senti tanta paz que eu parecia me dissolver no dia. Éramos eu e a tarde uma coisa só. Nunca mais tinha visto tudo em mim com tanta liberdade, em tanta sintonia, parecia que eu docemente me alargava, ganhando a extensão do universo. Nascer de parto normal deve ser assim - pensei assustada. Como ser acordado bruscamente de um sonho vespertino. E ter, por um instante, a estranha sensação de ter se desgarrado do mundo.

Dos dias de inverno

O bom da chuva é essa saudade que sobe junto com o cheiro quente de chão molhado. É o hálito amoroso da natureza. Me acalmo só em sentir chuva do lado de dentro. Me alegra ver as pessoas passarem tão vagarosas quanto o próprio dia, tão quietas como tudo lá fora. No frio todo mundo se esconde, fingindo que o dia é só seu. Mas não. Não se deve cometer o erro grave de querer que tudo se aqueça. Para que? A graça é sentir chuva sem se molhar, é precisar de um calor que é tão particular e que pode lhe vir por um sorriso nos olhos, por um encontro de mãos, por linhas de um capítulo, por gomas de açúcar, barulho de poças. Se não fosse a chuva, tão pouco despencaria uma torrente de vontades. E de auto-gentilezas. Que confidência é a chuva em casas de cobertor. Que confeito é o chuvisco em meios de semana. Como descrever a incrível sensação de pé gelado em lençol gelado e uma alma deliberadamente espaçosa, de largos sorrisos, embora embrulhada aos joelhos em um canto quente da cama.

Descalços.



Sabem-se feios. E é só. (Uma daquelas coisas que nos contam). Em todo o resto do tempo, têm em si uma singeleza e uma vontade de viver tão grande que não podem se ocupar de mais nada. E são tão admiráveis. Sempre tiveram muito mais coragem do que eu, e em sua estranheza tocaram firmes a beleza do mundo. Sempre os vi assim: sedentos de sentir. A frieza da chuva, a maciez da grama, a dureza do chão, o morno da pele, a noite condensada na rocha, o vento, o espalhado de água. Vez ou outra sorriem mergulhados em areia branca - só eu percebo. Sempre quiseram andar assim, sem nenhuma veste, nus e arredios a vida inteira. Quanto os invejo. Porque se têm uma capa grossa é porque escolheram desde cedo enfrentar o gosto da terra, fizesse cócegas ou fervuras. A capa foi só uma proteção que a vida lhes deu, porque decidiram nunca tê-la para com a vida. Que inveja sinto dos meus pés. E quanto amor há em seu aspecto distraído, como uma criança despreocupada. Tão cheios de talhos, por vezes secos como o chão, mas de tanta poesia. Amo-os com paixão e deixo que sejam com liberdade. Mas apesar de tanto querer e tanto desembaraço em viver, há muito não recebem carinho. Esquivam-se. Tudo porque é o único momento em que lembram-se feios. E é só. De todo o resto se perdem em sua beleza infinita misturados às texturas da natureza. E doam-se, ao mesmo tempo em que se encarregam de sentir o mundo pra mim.

Meu Celular (um texto que mais dias, menos dias, vai ser extinto)

Cismo com meu celular. Somente porque ele tem vontade própria. Ele podia ser um mero respeitador de outras vontades, da vontade de quem não manda na vontade e quer falar, na vontade de quem espera outra vontade para finalmente ouvir. Mas não. Ele quer ser ele. E eu não gosto quando nos momentos em que mais preciso, de uma emergência que podia ser policial, mas é delicadamente doméstica, ele simplesmente não funciona para me convencer a usar a paciência. Nem quando eu estou precisando encontrar minhas respostas, em uma angústia desmedida, e ele está fora da área pela simples cumplicidade de me deixar só. Eu preferia que ele não se metesse. Porque hoje, por exemplo, eu estou com essa falta, com essa saudade enorme de alguém que não sei quem é. Chego até a chorar muda, caminhando pela casa, porque não se sabe nem por quem sinto tanto. E não dá para se despedir, nem para pedir pra voltar e dá um medo de perder. Estou assim desde de manhã, um dia todo avesso, como se eu tivesse vestido uma roupa esquisita, desconfortável. Horas me apertando o peito, horas a cabeça. E justo agora nessa falta de ninguém, ele não liga e fica como eu: “procurando”. Não me deixa falar com qualquer um e me obriga a dissipar o amor pelo canal da intuição, da lembrança, do afeto que vem tão junto da memória. Eu queria poder dizer isso a alguém, contar do meu doído, mas não posso, porque sua personalidade também é forte demais. Seguimos em silêncio, eu e ele. Eu com um pouco mais de vantagem, porque tenho as linhas e com elas também escorro, escapo. Mas ele fica ali na ponta, irredutível, frisando essa ausência que pode até ser de mim.
Bem queria que ele fosse só um celular.