domingo, 17 de maio de 2009

Luise

Esse texto é um Grande Presente que ganhei de um amigo, Daniel Borges, tão lindo quanto sua alma.


Luise

Numa tarde nublada de outono, entre abril e maio, sentado num banco de praça, observo as folhas, que, tendo cumprido seu ciclo, caem secas sobre a terra molhada. Vejo velhos enamorados, jovens jogando damas, e crianças... Por entre as amplas copas de amendoeiras centenárias, de grossos troncos e longos galhos, alguns poucos raios de sol tocavam a pouca grama que ainda havia no parquinho infantil. Iluminada sob o sol, vejo uma menina aparentando 8 anos, com um lindo vestido vermelho de vários tons, de estampa simples e bordado singelo, sapatinhos de boneca, traços finos, cabelos negros, nem cheios nem vazios, e naquele quadro de Renoir, o que mais se destacava eram seus olhos, grandes e arredondados de um castanho escuro e um brilho...brilho só encontrado em olhares de criança. Ela olha pra mim e sorri sem razão; vira-se, e ali naquele ponto, sobre a grama e sob o sol, fecha os olhos, abre os braços, levanta a cabeça e deixa-se banhar de luz. Havia uma dúzia de crianças ali naquela praça. Todas cheias de mimos, vontades, medos, todas tão carentes de atenção e querendo tantas coisas ao mesmo tempo... mas não aquela menina, aquela menina não... Algumas pessoas vivem uma vida inteira e continuam pensando que viver é movimentar os corpos, que é preciso intensidade, paixão e mesmo quando tudo está perfeito parece que ainda há algo a ser feito... outras descobrem, ainda muito cedo, que viver é encontrar a luz e descobrir-se nela, e, deixando-se preencher por ela, naturalmente transbordam. Aquela menina me deu algo muito especial quando sorriu pra mim. Percebi, não muito longe, um vendedor de balões. Aproximei-me dele, tentando não desviar o olhar da menina, comprei um balão vermelho e segui em direção a ela; sem dizer uma palavra, coloquei o cordão do balão em sua mão, ela abriu os olhos, delicadamente, enquanto volta-se para mim, sorriu uma ultima vez, e voou...

Paris para ela

Paris é para os que amam. Ou para os que amam o amor. Ou para os que amam o cheiro do amor que está para nascer, impregnando postes de rococó cobertos de orvalho. Paris é para os sonhos que não anoitecem mas se apaixonam pela noite. São para os infantis. Os despeitados. Os limpos. Os adores de borra de café. Existe uma Paris em cada língua de amantes, em cada hálito de despertar, em cada pedra de açúcar ou bula para risos. Paris mora sozinha para ser o encanto dos amados. Dança, escuta o som entristecidos dos violinos, clareia sobre a lua imensa e amanhece. Entretanto, tão solitária é a terra de tantos pares. Porque nunca haverá, e ela sabe, outra igual.

Doação

E então, por um instante, tudo se clareou e eu compreendi, com uma simplicidade bonita. A única e melhor coisa que eu poderia doar era essa: ser tudo que sou. Ser tanto, de uma forma tão plena e tão destemida, tão aberta e tão desabrochada, que chegue ao ponto de poder me ser para os outros.

Contra a Solidão

Contra solidão, o remédio do seu próprio veneno: mais horas consigo mesmo.
Lida-se com a solidão estando intensamente com você, depuradamente com você, até que não haja espaço para mais nada, nem mesmo para sentir o sentimento de falta. Intermináveis momentos de auto-amor, de brio com a própria cara, o zelo merecido. Honras ao seu nome, doçuras ao senhor da certidão. Privilégios simples: se dar de presente letras que falam aos ouvidos da alma, se doar para um silêncio tão rico da noite, deitar os olhos com uma música que sozinha dança em você. Fazer um mínimo ato, de natureza de olhos, mãos, nariz ou peito, que tenha a virtude de ser tão próprio seu, tão legítimo de sua vinda, que lhe faça repousar da vida em qualquer comunzisse de tempo. Tudo para que você possa, enfim, estender os braços se alinhando com a Terra, e com um sorriso tão reservado de satisfação, agradecer por pertencer àquele momento e aquele momento pertencer tão inteiro a você.
Simples, feliz e grato, estando calmo ou de sutil alegria, você perde então a noção das horas e do dia, e vive para seu próprio deleite. E nesse gesto de carinho genuíno com você somente, vamos enchendo o peito de estranha felicidade e, docemente, ferindo as pernas da solidão, até que ela mesma tenha o que temer.