sexta-feira, 29 de maio de 2009

Espera...


Ás vezes eu me pergunto: é mesmo o mesmo ano? Estamos tão bem, eu mal pude, e de repente, assim. Veja, é o resultado dos dias que fizemos, cada dia. O minúsculo mostrando para nós que tamanho de fato ele tem, que importância. É a soma de todas as frases não ditas para mim. São os espaços em brancos todos juntos, que você insiste em achar que eu deixei, formando um só muro pálido. Veja como nossa corda balança, como tudo parece desalinhado. Entretanto é sol, e esperamos juntos que alguma coisa seque. Que um pouco de vento quem sabe varra, com mais passar de dias, com inaugurações. Me acordo, em um descobrimento repentino, para um amor que tanto existe em silenciosas intenções de melhora.


(Deixo esse texto sem desfecho, posto que ele é somente vida, vida é o que ele é, e deseja acontecer assim, em descontínuo seguimento.)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

e em um instante, sua pele clara se inflamou, seus olhos quase saltaram, o suor frio lhe desceu pela orelha, um estrondo arrebatou-lhe o peito e em um esforço imenso, eu diria sobre-humano, a olhou.

Estranha natureza.

Um menino tão tímido de tão escandalosas saudades.

Imprevistos

Veja meu bem, às vezes o mundo está do avesso, às vezes esquecemos de pular nas costas do nosso próprio trem, deixando o vento bater forte no rosto, furando o destino com o nariz e recebendo mais vida em porções fartas de ar gelado. Eu sei que às vezes dói um doído do que a gente queria que tivesse acontecido, um desencontrado assim só nosso. Mas não se preocupe, porque afinal de contas temos tanto de nós. Temos essa coisa toda farta de um estar tão dentro do outro, de eu estar mergulhada em vãos de linhas, tão escorregando em curvas de letras, e você tão me invadindo com verdades melódicas, espaços e mãos, desejos e tempos. Há nesse branco todo do universo um ao outro para a gente rir de gargalhada nossa, pra gente falar de qualquer coisa pouca, porque nossa paixão é gratuita e tão irremediável. Veja bem como eu me derreto te olhando, como tenho vontade intrínseca de você em qualquer hora do dia, porque quando fomos feitos, nem mesmo o dia havia. Essa é só mais uma declaração de estampado alto, para você saber do meu amor por você e também por mim, que consola enfim essas coisas todas da vida, fazendo um intervalo tão só nosso em que dá prazer de existir. Te amo sem pontos em mim.

O calendário nos conhece.



E de repente, vejo as luzes todas do carrossel e os risos circulares em volta de nós, tão cheios de bocas, de música. Eu pensei que nós éramos uma pausa no dia. Sim, porque quando nós somos, os problemas com o saldo já não são, os dias cinzas já não são, o partido no peito já não é, qualquer coisa incomodando as idéias já não.


Mas nós não somos a pausa no dia. Nós somos o Dia. O Dia Esperado. Aquele que acontece em um ano místico, que reúne a força dos planetas, um encontro milenar entre o sol e a lua no mesmo traço. Somos o dia que precisa de sorte para acontecer. Somos ele. A benção do calendário. A flor das estações. A ventura dos tempos, a promessa das mães. A alegria em olhos de criança, apertados na noite, de tanto sonhar.


Nosso encontro anuncia vida. Entre tantas estações, brotamos tanto. O que sentimos ilumina, acolhe corações, nos faz ir ao chão, de tanta graça. Juntas somos tudo que precisamos. Somos um abraço silencioso e tão impregnado de amor, que continua acontecendo mesmo braços distantes, mesmo que não seja o dia único, mesmo que não haja encontro de luas, mesmo que não seja o ano místico, tão valente e vibrante em dias simplesmente comuns.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Amantes

Agora vamos rir dessa ironia. E desse prejuízo. Somos presas do nosso próprio artifício, feridos de um mesmo veneno. Sabíamos muito bem do amor mais difícil, ao qual sucumbimos: aquele que não podemos. O que simplesmente criamos. Não me estranha que seja melhor do que os outros: o que poderia ser mais perfeito senão o que leva a sua autoria? Ao contrário de tantos, ele não se alimenta de vida, da concretude dos dias, haja fartura ou tapas no osso. Cresce sem rumos e sem freios a cargo de nossa querência, da imaginação. Somos bem assim: eu te existindo em vontades urgentes e você me abraçando em silenciosos pensamentos, por convenientes vezes, quando quero me aquecer. Alguém nos socorra com crimes de fato. A arte do impossível está nos tornando perfeitos, como eu nunca saberei, nem você alcançará. Antes, derrubássemos todas as barreiras, infringíssemos a lei de forma brutal, ardêssemos em beijos, e assim, tão impunes e imperdoáveis, nos tornássemos menos amantes do que temos sido, apenas com o olhar.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Em comunhão

Eu adoro ver meus lábios ardendo, por uma gota de pimenta, enquanto arde ao mesmo tempo o sol no clarão do céu. Eu adoro sentir sua cor inflamando, seus leves traços como projetados, seu jeito alarmado e sinuoso, se enchendo de uma coisa que parece vida intensa. Ardendo de uma força estúpida e só para mim, mas doce, quem sabe, para o que lhe encosta. Os sorrisos escapam, inertes à qualquer quentura ou queimadura. Pouco se movimentam os donos, concentrados apenas em arder e pousar. Quando meus lábios estão assim, deixam de ser boca. E mora, na minha face, um convite cor vermelha.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Amor quando fala, arde.
Amor quando falta, cala.
Amor quando cala, arde.
Amor quando arde, fala.
Amor quando falta, arde.

Amor quando cala, fala.

Caso de Polícia

Que é isso, estranho? Alguém a avise que não pode ficar aí, que é propriedade privada, protegida por lei, com autorização para reboque e expulsão. Que tamaho de absurdo, minha gente, quem deixou essa coisa mínima entrar? Essa vontadezinha, vontade de chorar. Avisem que não há lugar, alguém a socorra, porque sou apenas o segurança, de nove às onze, já fui cabo, já fui polícia, não tenho jeito para lidar. Minhas palmas são grandes demais, veja, e essa menina é isto. Interrompa o exército, mande segurar os guardas, abafar a sineta de alarme, conter os cães. Há uma invasão de uma vontade de chorar, uma vontadezinha, em um peito particular, de impostos pagos no vencimento. Mas não há motivos para alarde. Já há gente convencendo-a a voltar, e ela prometeu não fazer destruição.

De todo modo, coletes à mão.

Soprados

Sim, como dóem. Como ardem. Meus ventos de dias quase domingo vêm assim. Precedidos por vulcões. Por colapsos e choros. Montes e lágrimas. Sou eu que os crio. Digo assim, com o assumido de uma criança. Porque minha habilidade de areia é pouca. Ainda não aguento ser muito tempo como água doce de rio. Eu não sei ser. Eu sempre tive mais medo da calmaria – e ainda o tenho. Das ternuras que as varandas nos provocam, o pouco ou o muito de sentir. Minha alma é tanta que em nada é mansa. Até amor sente demais, até a paz é imensa até que lhe sufoque. Explosões. São meus remédios de ser. Pequenos espalhaços de mim. Pequenos livramentos de mim. Doações gratuitas à natureza, aos tetos, de infinitos intranqüilos repletos de minha alma. Pedaços de mim flutuando, há quem os reconheça. Sufoco e suspiro. Prefiro ser assim, espalhada. A manter um olho de ventos no centro do peito.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Se

Se você não fosse assim
Se eu não soubesse
de você assim
Se tudo fosse de outro jeito
Mas a gente fosse
desse mesmo jeito
Se não houvesse
Esse mundo de se
Se nosso se virasse sim
Você ia ver se a gente
mudava alguma coisa
ou se achava algum defeito.
Ah, SE ia.
Folhas. Eu as amo, folhas. Eu amo vocês existindo puras, contra esse céu branco. Em uma pintura dessaturada, mesmo em cores de meio dia. Folhas, eu amo sua rendição. Amo seu desenho tão plástico, seu lindo penteado na tempestade, todas as centenas arrumadas para o lado direito, como uma carícia de cabelo. Como amo sua revolta. O balançar por mais revolto me soa como poesia. Eu também sou o branco que as cobre, folhas. Eu também sou imenso, sou o vento que as engole. Estamos tão juntas, tão emaranhadas, que tenho o seu mesmo cheiro de mata virgem molhada, tão encabrunhado na pele, tão intenso no hálito. Amamos-nos na pureza toda e na nudez da natureza. E estamos serenos, de olhos abertos, completamente entregues aos repuxos do vento, ao seu jeito indomável, seus impulsos e sabedorias. Apenas dançamos, vendo em tudo poesia.. Como as amo nesse céu de inverno. E agora sou também ela, sou a chuva que nos pinica, que nos invade calma e plena, ensopada de razão. Eu sei, eu entendo, porque agora também estou derramada, sou água que desce pro mar, rolando no chão.

Teimar - há que se praticar

A teimosia movimenta a vida. É um levante contra as águas do destino, uma fronte diante de tudo que é certo e estabelecido e organizado. A teimosia é uma arte, meus amigos. É a vitela da criação, um segredo da própria vida – para que você pense que ela está indo contra ela mesma, no entanto está rindo alto e se refazendo. Não tem liberdade maior que largar os braços, ou suspendê-los de tanta ironia. Não vou fazer – é o que dizemos todos os dias, é o que noite diz quando lhe pedem pra acender agora, é o que as horas respondem indo ao contrário da memória, é o que a gota de choro pensa quando insiste em não cair, é o que vento responde à sua tentativa de se arrumar, é o que as formigas falam contra o peso dos homens. Sem teimosia nem terras, nem explosão, nem pêlos. É se negando que se faz o novo, que se abre a boca da vida para fazer ela contar todas as suas intenções, a custa de muita risada de nós. E nunca se sabe aonde a teimosia vai te levar afinal, porque a primeira pessoa que ela contraria é a ela mesma, inventando um novo destino. É por isso que são uma da manhã e eu insisto contra a pálpebra, contra o tempo, contra o cansaço, contra o trabalho no outro dia porque meu prazer é teimar, é futucar a novidade com vara curta e irritar com mania de sim. Sou eu mesma que sofro com o cansaço, é meu, mas rio satisfeita, vendo o mundo ainda se surpreender, achando que podia usar o verbo agendar para mim.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Comunicado

De forma, prezados senhores, que eis a única coisa solene, justa e respeitosa que posso lhes aconselhar:
Que a sua forma de pensar não se torne uma fôrma de pensar.
E que o mesmo aconteça com sua forma de sentir.
Tenho dito.


(E disse isso em assembléia, usando unicamente sapatos lustrados)

terça-feira, 19 de maio de 2009

Feliz Ano Novo

Precisamos ter uma conversa, e esteja sabido que é urgente, daquelas entre nós que desafogam a alma e desatam os nós. Mas acontece que é noite, e não se dorme direito depois de uma conversa dessas. E amanheceremos. Então que no outro dia houve a lástima de termos perdido alguém. E esquecemos muito bem esquecido por um dia, praticamente inteiro, porque há tanto que se valorizar a vida em si que já não importa conversas quaisquer. E então que era quarta, e deu uma grande preguiça de conversar, melhor comer frituras, todos achamos. E chegou o sábado, e ninguém interrompe um dia de alegrias desses, de tarefas voluntárias e imensos afazeres inúteis de grande prazer, como balançar os próprios pés, para isso. E aconteceu do mês passar e só havia mesmo que se preocupar com as contas, contas do próprio mês. E então que eu casei, e não se fala em conversas dessas em brindes de bodas e debaixo de uma chuva torrencial de grãos de arroz, não cabe. Mas era necessário conversar, era sim, porque ninguém gostaria de entrar com isso no ano novo, antes livrar-se no velho mesmo. Mas acontece que só restam dois segundos. Dois. Um. Feliz ano novo. É tudo que foi dito.

SONO

De maneira que acho demasiadamente injusto pequenas pálpebras carregarem tanto sono. E pessoas tão pouquinhas, levarem sonos tão obesos nas costas. Fico pensando o que faz o mundo as obrigar a caminhar assim, com uma sacolinha de volume tão menor que o próprio sono, sendo obrigadas a arrastá-lo a punho pelo trabalho, pelas ruas e avenidas, pelas faixas de pedestre, pelas passarelas, ônibus às oito e meia, ventos de praia e almoços com mosca. Sim, é uma desumanidade, visto que são tão pequenas, magras pessoas, e levam todo o sono que lhe és imposto nas costas, até o sono do próprio patrão, já que mais um café, outra reunião, um novo telefonema e cara de ameaça nos mostram que não há nunca neles, em tempo algum, uma vontade ainda infantil de dormir. Antes, a distribuem de maneira igualitária entre seus funcionários, que, ociosos, a carregam tristemente, sem receber sequer um ajuste salarial por isso. Fica aqui o meu protesto manso, porque mesmo que fosse alto, não acordaria tamanha dormência, só mesmo um grito de sábado ou feriado instituído de repente numa quarta-feira. Só os aviso para que não aconteça, de em uma semana qualquer, os funcionários também se revoltarem e largaram sobre as mesas de seus patrões dezenas de toneladas de sono, de forma que a empresa boceje e que o patrão não consiga carimbar o aviso prévio, nem mexer sequer o mindinho de tanta preguiça.

O mundo que é seu.

E aconteceu que ela me falou que podia mudar o mundo. Como assim mudar o mundo. Mudar o mundo assim ter o mundo que é seu. O que você quer do jeito que você quer. Veja que essa casa nem sequer precisa estar aí, veja que essas ruas podem ter a abertura da boca de um lobo e que poderia ter massinha de modelar de tons bem infantis nos rejuntes dos prédios. E que se necessário fosse, eu poderia arrancar o nariz, duplicar uma das pernas, estender os lábios assim, na direção do sol, agudos e apontados. O que você quiser, você. Perguntou porque eu não estava fazendo isso a mais tempo. Olhei com os olhos. Parei por um instante concentrada em meia dúzias de folhas verdes tão riscadas sobre mim. Voltei e então vi que ela estava cercada por centenas de cabritos, dezenas de cabritos branquinhos, feito flocos de algodão. Tão feliz em ser um neguinho de pastoreio, ali, naquela avenida.

Demais para uma pessoa só.

Ela foi morar com ele. Não bastasse o sei lá o quê que o bendito tem na pele, que faz qualquer mulher, sendo feita no mínimo de uma camada de adesivo, queira grudar até os fios de cabelo no suor de suas costas. Não bastasse o cheiro que entorpece, a recusa que é quase uma ofensa, a perdição total e plena dos próprios direitos quando entramos na casa de sua língua. Não estivesse bastante o pouco caráter que às vezes só ajuda em sua propaganda, típica de posto de gasolina. Agora isso. Lamentam todas. Agora ela foi morar com ele. Ela, a voz rouca, ainda foi morar com ele.

Entrelinhas

Resumimos-nos ao “bem também”. E o meu "bem também" incluía: tenho tanto pra falar que prefiro nem falar nada, também não sei se entenderia e se viria ao caso eu querer falar de tudo agora, mesmo sabendo que você tem interesse. E o dele "bem também" incluía: você anda sumida e responde pouco, mas não vou me estender perguntando porquês, nem puxando assuntos triviais ou você vai achar que eu insisto em você, e só em ver sua resposta já acho melhor ficar calado, embora tenha mesmo, tenha tanto a dizer. E assim encerra-se o diálogo fluente de palavras não ditas.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Foi então que ela, se dando conta, se debandou da casa, abriu aquela cerquinha de madeira, levantando de uma só vez folhas e ventos, e me vendo ao longe no caminho, deu um grito todo branco:

- Menina, o amor te ama!

E até hoje se escuta, até hoje.

domingo, 17 de maio de 2009

Luise

Esse texto é um Grande Presente que ganhei de um amigo, Daniel Borges, tão lindo quanto sua alma.


Luise

Numa tarde nublada de outono, entre abril e maio, sentado num banco de praça, observo as folhas, que, tendo cumprido seu ciclo, caem secas sobre a terra molhada. Vejo velhos enamorados, jovens jogando damas, e crianças... Por entre as amplas copas de amendoeiras centenárias, de grossos troncos e longos galhos, alguns poucos raios de sol tocavam a pouca grama que ainda havia no parquinho infantil. Iluminada sob o sol, vejo uma menina aparentando 8 anos, com um lindo vestido vermelho de vários tons, de estampa simples e bordado singelo, sapatinhos de boneca, traços finos, cabelos negros, nem cheios nem vazios, e naquele quadro de Renoir, o que mais se destacava eram seus olhos, grandes e arredondados de um castanho escuro e um brilho...brilho só encontrado em olhares de criança. Ela olha pra mim e sorri sem razão; vira-se, e ali naquele ponto, sobre a grama e sob o sol, fecha os olhos, abre os braços, levanta a cabeça e deixa-se banhar de luz. Havia uma dúzia de crianças ali naquela praça. Todas cheias de mimos, vontades, medos, todas tão carentes de atenção e querendo tantas coisas ao mesmo tempo... mas não aquela menina, aquela menina não... Algumas pessoas vivem uma vida inteira e continuam pensando que viver é movimentar os corpos, que é preciso intensidade, paixão e mesmo quando tudo está perfeito parece que ainda há algo a ser feito... outras descobrem, ainda muito cedo, que viver é encontrar a luz e descobrir-se nela, e, deixando-se preencher por ela, naturalmente transbordam. Aquela menina me deu algo muito especial quando sorriu pra mim. Percebi, não muito longe, um vendedor de balões. Aproximei-me dele, tentando não desviar o olhar da menina, comprei um balão vermelho e segui em direção a ela; sem dizer uma palavra, coloquei o cordão do balão em sua mão, ela abriu os olhos, delicadamente, enquanto volta-se para mim, sorriu uma ultima vez, e voou...

Paris para ela

Paris é para os que amam. Ou para os que amam o amor. Ou para os que amam o cheiro do amor que está para nascer, impregnando postes de rococó cobertos de orvalho. Paris é para os sonhos que não anoitecem mas se apaixonam pela noite. São para os infantis. Os despeitados. Os limpos. Os adores de borra de café. Existe uma Paris em cada língua de amantes, em cada hálito de despertar, em cada pedra de açúcar ou bula para risos. Paris mora sozinha para ser o encanto dos amados. Dança, escuta o som entristecidos dos violinos, clareia sobre a lua imensa e amanhece. Entretanto, tão solitária é a terra de tantos pares. Porque nunca haverá, e ela sabe, outra igual.

Doação

E então, por um instante, tudo se clareou e eu compreendi, com uma simplicidade bonita. A única e melhor coisa que eu poderia doar era essa: ser tudo que sou. Ser tanto, de uma forma tão plena e tão destemida, tão aberta e tão desabrochada, que chegue ao ponto de poder me ser para os outros.

Contra a Solidão

Contra solidão, o remédio do seu próprio veneno: mais horas consigo mesmo.
Lida-se com a solidão estando intensamente com você, depuradamente com você, até que não haja espaço para mais nada, nem mesmo para sentir o sentimento de falta. Intermináveis momentos de auto-amor, de brio com a própria cara, o zelo merecido. Honras ao seu nome, doçuras ao senhor da certidão. Privilégios simples: se dar de presente letras que falam aos ouvidos da alma, se doar para um silêncio tão rico da noite, deitar os olhos com uma música que sozinha dança em você. Fazer um mínimo ato, de natureza de olhos, mãos, nariz ou peito, que tenha a virtude de ser tão próprio seu, tão legítimo de sua vinda, que lhe faça repousar da vida em qualquer comunzisse de tempo. Tudo para que você possa, enfim, estender os braços se alinhando com a Terra, e com um sorriso tão reservado de satisfação, agradecer por pertencer àquele momento e aquele momento pertencer tão inteiro a você.
Simples, feliz e grato, estando calmo ou de sutil alegria, você perde então a noção das horas e do dia, e vive para seu próprio deleite. E nesse gesto de carinho genuíno com você somente, vamos enchendo o peito de estranha felicidade e, docemente, ferindo as pernas da solidão, até que ela mesma tenha o que temer.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Mensageiros do tempo


Existe um povo que vive. E vive simplesmente. Mas existe um povo que avisa. Que é luz de beira de estrada, é telegrama do destino, balcão de informação da vida. Tem gente que está no lugar certo, na hora certa, para lhe confirmar o caminho, lhe dar os suprimentos de viagem que enchem a barriga d´alma e aquecem as inquietações, feito uma manta encomendada. Gente estratégica. A palavra dessas pessoas é farol em noite de neblina. Chegam simplesmente sem avisar e estão lá, não por acaso, mas já esperando por você. O que você recebe delas não é nada menor do que a voz do universo. A resposta às suas indagações, o bilhete da passagem que vai te deixar na próxima estação, nesses trilhos horas tão duros, horas tão difíceis do caminho do crescimento. A essas vozes mansas, que atenuam corações e olhos dilatados, que são a notícia boa que viaja, mensageiros do tempo tão bem disfarçados pela despretensão, meu mais sincero agradecimento. Vocês são o marco de passagem em minhas páginas. O que encontrei nos olhos de vocês é luz para levar com os meus. Sigo com a certeza de que o encontro leva apenas o tempo necessário – a caminhada com os próprios pés prossegue sozinha – mas aquilo que recebi permanece agarrado a mim, por milhas infindáveis e tempos que me esperam, em um destino sem nome anunciado, mas aguardando com ansiedade o meu.



Dedico esse texto à Rose e a todos os amigos que me agraciaram com o mesmo papel.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

A mulher que vive em mim.

Pouco me importa o que você pensa de minha aparência. Porque sou segura enquanto mulher. Pouco me importa o seu porquê entre os fios do meu cabelo, seu ar esnobe, seu desdenho. Não quero saber o que seus olhos têm a me dizer – porque palavra de olhos seus é rasa, é tão pouca de morrer entre a íris e a claridade, entre uma piscada e outra. Você só sabe ver o que está visto, até sua língua dança sobre o tédio. Não me importa mais o que você pensa sobre mim, sobre o desarrumado do meu cabelo, sobre a virtude da minha pele, meus passos, aquilo que exala quando existo sem fim. Não me importa porque sei a mulher que sou. E entenda: o meu conceito de mulher é que é grande, o meu conceito tão diferente do seu. Ser mulher para mim é saber imensamente. Coisa que seus olhos, seus dentes, seus ombros estão muito longe de alcançar. Sou a mulher que sinto. Sou a união de todas, transpiro em mim todos os punhados de luz. Meu cerne está firme, não se ampara no que você diz, nem no que vem dos dedos, seus medos, seu verbos sem freio. Sou o que vem do meu ventre e o infinito em mim não me escapa. Minha beleza por vezes é mansa, mas aquilo de que sou feita tem força incomum. Se tenho que confiar em algum olhar, confio no meu, que vê além da claridade.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Tinha um rosto masculino. Uma alma tão doce com um rosto masculino. Aquele contraste me chamou atenção. Ela caminhava assim, e quem a conhecia de vista, só podia ver a armadura que a própria vida lhe deu. Vai ver para esconder tanta doçura, vai ver por uma distração do destino ou só para mostrar quão imprevisível a natureza pode ser. Bastava trocar algumas palavras para ver como se derretiam, olhos, braços, queixo, corpulência. Tudo se tornava uma doação de amor, uma singeleza de viver. Ela, de rosto tão masculino, conseguia transformar o tempo em um tempo feminino, um vento todo feminino, o dia em feminino, o socorro em feminino. Com suas delicadas mãos, ela impregnava nossos encontros com a calma e a gentileza que pouco se vê pelo mundo, fazendo com que todos, um a um, quisessem deitar sua alma naquele jardim. E mudava, assim, o rosto da própria vida.

Engenharia da vida

Minhas unhas não caem. Não caem. Não me deixam nua, desamparada, em choque com aquela nova situação, tão estranha. Na sabedoria da natureza, a unha nova vai substituindo a antiga, nascendo calmamente e empurrando a outra com o máximo de discrição. Foi aí que me dei conta da minha própria natureza. Em como eu estava vivendo a mesma coisa, dentro de mim. A antiga Luise não descolava, feito uma tampa, enquanto eu andava pela rua, me deixando para sempre livre dela. A mudança era artesanal, meticulosa. Eu não era a pessoa nova que nascia, branca como carne de unha, viril e tão cheia de beleza. Nem era o escurecido da pessoa velha, tão dolorida e estranha, sendo empurrada pelos dias. Eu sou a mancha, a mistura. Sou o exato momento em que as duas existem juntas, a passagem – e há tanta beleza na feiúra. Eu sou o manchado que dá forma à transformação, sou a própria delicadeza da vida em me reconstruir. E existe de uma forma tão bonita tanto das duas em mim! É verdade que às vezes minha parte antiga também me doí, feito unha encravada, e eu me confundo. Mas ela é também morta, tão morta quanto o tecido de uma unha, e o fato de ainda estar agarrada a mim não a faz viva. É o contrário da outra que tem o fôlego novo de quem nasce e não pede permissão para chegar, ganhando seu espaço dia após dia. Sorrio de canto ao ver tanta beleza nesse estado, na manufatura da alma, na engenharia da vida, e passo a confiar mais no que a natureza planeja. Mas nem sempre nos conta.

Primeiro encontro. É o final feliz dos melhores contos. O primeiro gole do vinho a conhecer a língua. As palavras exatas peneiradas do dicionário. As promessas que nem precisam ser feitas. Os sorrisos que nem precisam ser convidados. Os olhares completamente encostados. Os melhores beijos conspirando de encontrar as bocas. Um clássico de cinema antes mesmo de ser lançado. A história perfeita de uma página só. Os palpites de dezenas de palavras não ditas. Os risos que também são música.

(O silêncio e o perfume.)

O fantástico instante vivendo entre o que nunca aconteceu e o que quer acontecer. Os passos em perfeita sincronia, mesmo sem levantar. O discurso de um fôlego só. O homem de toda uma vida de um nome recente. A mulher que é a sua, e ainda não é. O fatídico encontro entre o que implora e o que não se diz. A história desconhecida onde já se conhece o final.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Prometo por todas as letras
Te amar
O amor do instante
E querer o espaço distante
Entre a fervura da boca e o beijo
Só pra encostar no teu peito
Prometo amar mais o seu cheiro
E se a chuva cair
Amar mais adiante
Ser inteira mesmo descoberta
Ser coberta por você inteiro.


(vamos fazer nosso verão agora
E ser inverno só em janeiro)

Desabafo

Um ódio exagerado indo com toda força contra uma tecla do teclado. Uma única letra amparando todo o peso de mim. Pode parecer demais, pode parecer um surto- que seja- eu não tenho paciência alguma para erros robóides, mecânicos ou digitais. Eu não agüento, eu não acerto. Só o que eu preciso é de um leito, de um papel todo em branco para descansar meu texto. Se a página de repente trava não é o documento que se perde, é muito pior: é a sensação, é a inspiração, é a brisa mansa que estava me levando a cinco minutos atrás, tão esparsa. Não tenho paciência para tudo que não acompanha meu sentir, que não me permite dançar, existir e esticar o meu mundo. Sou feita de instante, não me peça para esperar - ainda mais conectar. A emoção já é tão delicada, para ser interrompida por uma caneta falhada? Não aceito, não quero, me revolto. Não há amor que dure assim. Muito pior que o próprio ponto no fim é esse word que é tão lento, e meu impulso tão violento, que saudade de um papel, sem linhas, sem pausas, inteiro, igualzinho a mim.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Frio


Quem dera as palavras também saíssem como espirro. Assim, como uma coceira inevitável, uma força que de repente se vale do furor do vento e pronto – derruba todas para fora do corpo. E com um simples “saúde”, todo mundo entendesse, perdoasse. Tem horas que palavra precisa disso: de um desengasgo. Precisa viver, sair para conhecer o mundo, se lançar sem querer sobre a pele, o rosto das pessoas. É inverno, faz um frio, o ar gelado passa por mim arrepiando minhas letras e abusando meus olhos. Descrevo, saborosamente , sobre essa minha vontade de respingar ditados.

Há vezes em que o carinho, o querer bem, o sorriso, o abraço, vem antes da intimidade. E o sentimento, tão leve, vem antes das palavras. Simplesmente se adianta, pede pra ser, mudando a ordem natural das coisas. É como chegar em casa para arrumar a festa e já encontrar os convidados sorrindo. E como é engraçado tudo isso. Porque é um querer bem que embaraça, que deixa qualquer um desajeitado. Sabemos e não sabemos lidar com isso. É uma verdade que não se acomoda, que incomoda, viramos os olhos, sorrimos com rapidez, escapamos como se estivéssemos fazendo alguma coisa de errado – esse gostar sem se estender. Não é por mal, nem por querer mal, é por querer bem apenas. Uma vez escrevi que não estamos acostumados a esse sentimento despalavreado, sem muito assunto ou explicação, sem necessidade alguma de nada. Tão complicados somos nós que não conhecemos essa forma dele de existir, apenas existindo. Disfarço, desconverso, desato, pra esconder esse desassossego íntimo depois de uma afinidade súbita. Nunca vi gostar sem razão, entendimento sem garantia. Engraçado eu ser assim contrária: sempre tive mais medo da calmaria.
Eu sei, meu bem
Que seu amor é merecido
Muito mais merecido
Que qualquer outro apresentado
Mas o fato é
Que o amor nunca é merecido.
É dado.

Um dia todo bom

Ainda estamos lá, ouvindo a música por acaso certa, embaladas em almofadas e pedaços de conversas. Ainda estamos ouvindo alto, bem alto, o ritmo do dia, caminhando conforme a melodia, apostando em risos e em menos cabelos. Estamos deliberadamente, inescrupulosamente acreditando que tudo vai dar certo, e o que não estiver certo, a gente mesmo endireita. Estamos brindando na pista, na vida, um dia de chuva com jeito de sol, um riso teimoso, uma semana inteira cabendo em uma tarde toda ela, toda alheia. Acreditamos no começo da noite, na noite que se perde no meio, no fim que nem se conhece, que parece um de nós, imaginando como vai ser. Gargalhadas e tropeços e pedidos de mais chuva – tem buzinas no endereço. E eu sei que não é da nossa natureza, que a gente gosta mesmo é de inventar, é de criar. Mas o que eu quero mesmo hoje é muito mais de ontem.


(Um dia todo bom. E ganha a palavra dia, neste dia, uma extensão muito maior e muito mais infinda que um dia)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O porquê das rosas.


Se você perguntar a uma rosa se gostaria de ter nascido cacto, é bem possível que responda que sim. Porque lhe custa muito ter os espinhos apenas no talo e ter tanta fragilidade à mostra. É por isso que as rosas levam tantos dias para se abrir. É quase um parto, uma despedida de sua doçura, um convencimento de si mesmas, uma fé arriscada, uma superação, um lamento se revelar e estar para sempre à mercê do mundo. Ninguém quer a sina de ter tanta delicadeza exposta. Assim são algumas pessoas, pessoas-rosa. Armam-se de tal forma, como se cravando os dentes, pudessem esconder o orvalho no canto dos olhos. Quem não as vê de perto ou não tem coragem de desafiar suas pontas, não descobre a beleza esmiuçada de seus traços e o desejo ingênuo que carregam de ver o mundo por inteiro protegido. Para quem é rosa, a vida chega a doer mais. Porque não são preparadas para ver a fragilidade humana, a fraqueza do mundo, mal são capazes de lidar com a própria. O vacilar do mundo lhe cai as pétalas. E chora ser rosa.

Fechada é um não para a vida. É uma noite escondida no vermelho escurecido de seus lados. É uma privação do céu ao seu perfume. Mas quando decide não mais fingir a rosa que é, tudo acontece. Quando assume para si mesma a própria natureza, estende sobre a vida uma beleza aguda, com o seu desengonçado abrir de braços, desdobrar de sonhos, em uma ignorância bruta de rosa, mas com uma verdade, uma sinceridade tão grande, que faz o mundo também ser quem é, e perder o medo de uma simples rosa.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Filiações do amor

Vez em quando passo a mão na minha barriga como se já houvesse uma criança ali dentro, só que aguardando a sua hora de ser. Amo-a já, já é minha, tão feita de meu ventre, tão confiante em minha humanidade. Temos um pacto de doação, de amor (com ou sem essa vírgula no meio). De mim para ela, dela para mim desde agora. Ambas esperamos apenas o momento em que as circunstâncias da vida possam existir, ao contrário dela que já existe, cumprindo sua obrigação na sabedoria do tempo. Sinto que ela fica tão ocupada quanto eu, em suas ocupações de não-nascida, vezes observadora, consciente, intuitiva e ainda mais certa do destino, já que é o próprio resultado dele. Eu aguardo, amando sua doçura. Sua presença silenciosa em minha certeza. Por um instante, cheguei a me perguntar se estava grávida de verdade. Se não sou eu que estou nascendo de mim.

Da inexperiência

Se felicidade fosse um presente, fico pensando se eu não devolveria de imediato. Assim, como se ardesse feito gelo seco ou mexesse em minha mão, como um bicho vivo. Fico me perguntando se não a lançaria do meu colo em um impulso. Sim, porque a todos se ensina desde a infância a buscar a tal felicidade, mas ninguém lhe diz como lidar com ela quando encontrar. Não, não é esta, a alegria, que é de anos minha grande amiga. Essa dorme em minha casa. Mas aquela que é calma, que é plena, fruto da realização, é justa e até merecida. Inofensivamente assustadora. É incrível a pouca habilidade de lidar com essa, nunca vi nada mais desajeitado. Ás vezes, basta algumas horas com ela para que eu sinta falta, acredite, de minhas preocupações, tornando a resgatá-las ou a inventar uma. Felicidade justa assusta, não estamos acostumados com essa coisa de direito. Eu não sei bem quem foi que disse que não estamos prontos para o que nós mesmos construirmos. Que é difícil sustentar. Eu não sei de onde veio, mas tão pouco importa, porque agora tenho os dedos abertos, firmes e quentes. A próxima vez que a felicidade se chegar, agarro-a de um golpe só, como a um gato preto de rua esperniando e arranhando. (Tamanha é a minha inexperiência que só agora lembrei que felicidade é moça educada. É só convidar gentilmente que ela entre e permitir que ela fique, pelo tempo que quiser, hospedada aí dentro.).

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Delicadezas semanais

Apenas delicadezas.

Hoje eu faria carinho numa mosca. Vai ver só porque estou precisando de carinho (especialmente do meu). Tem uma bem aqui, parada no meu monitor, nem anda , nem se mexe, absolutamente concentrada em suas reflexões. Vai ver não tem a pressa que eu tenho para entender o que sente. Vai ver dormiu – para mosca só é preciso se sentir seguro, que nem a gente em ombro de novo amor. (Devo confessar que é uma honra ver que uma vida mosca não se sente ameaçada com o que sabe de mim, a ponto de querer descansar). Fato é que o silêncio da mosca me comove. Me lembra o meu. Nem quis atrapalhar. Sabe lá se não está magoada também com alguma coisa que lhe disseram. Decidi parar de pensar. Ela deve ter se incomodado com minhas tentativas racionais de adivinhação porque acaba de mexer as patinhas.

(Tomo cuidado na hora de passar a bolsa. Quanto tempo ela ficará aí? Sorrio discretamente. Encontrei companhia para minha tarde.)

(16:15. A mosca toma seu rumo. Viu? Depois de um tempo só, todo mundo toma coragem e voa.)

(19:40. Nem sinal da mosca. Quem vai, não volta atrás.)



* * *


Me olhei no espelho. A primeira coisa que vi foram minhas orelhas. Já é a segunda vez que me acontece, que estranho. Primeiro eu pensei que é porque eu estou andando mais de rabo de cavalo, deve ser isso. Mas minha psicóloga ia dizer que é porque eu já estou achando uma razão para tudo. É verdade, deve ser a mais pura verdade: minha orelha quer aparecer. Quer me mostrar que, de uns tempos pra cá, ela deseja fazer mais parte do mundo, está quase abraçando a vida projetando-se para fora. Vai ver cresceu minha capacidade de ouvir – mundos, pessoas - e eu nem percebi. Nem sei desde quando, nem que crescimento já me trouxe – sinto apenas que elas também estão ganhando mais espaço, o espaço que eu dei. Ou talvez, só estejam avisando que agora sim, com a companhia delas, estou pronta para aprender. Engraçada essa vida. Até quem é feito para escutar quer me dizer alguma coisa.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Normal

Senhores, eu estou em parto. O amor empurra minha pele para sair, de todas as formas, em todos os ventres, e a minha tentativa de conter é para mim as verdadeiras dores do nascimento. Não se rende o amor aos meados das idéias. Aos dias cinzentos, aos sentimentos mudos. Dói não falar qualquer coisa que seja, ainda que seja a ausência do próprio amor. Esse texto é um alívio, uma expulsão. Um documento assinado por mim mesma de que a arte de expurgar é mais do que arte: é permissão para viver. Não sei existir entre quatro muros, nem mesmo as quatro muradas minhas, e não posso mais fingir me acostumar. Abri o rio. Eu confesso derramando letras e choros e suor e delírio: eu já estou por ele perdida, por ele rendida. Porque se nasci, nasceu comigo ele também.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Nasceu às avessas, o pobre, o sentimento. E de tamanha estranheza, nem sequer ganhou um nome de batismo, como se tem direito. Existiu assustado sob os olhares: horas de alegria, horas de lamento. Vivia sob um espanto admirável, indefinido, inofensivo. Todos lhe conheciam, todos lhe tinham medo. De forma que, como uma regra instituída, por meio de uma convenção, ficou decidido que seu nome não viria pelo nascimento, mas sim, pela morte: “Se vinga nessa terra, é amor. Se morre, é paixão.”
Sim, é possível amar um carro. É possível amá-lo com tanta força que a ida ao cinema passa a ser uma busca obstinada no mapa da cidade. Qualquer vulto de cor cinza metálica, no meio de uma conversa, de um almoço, de uma confidência, de um trânsito atrapalhado pode lhe chamar mais atenção que um pedestre em agonia. E quanto sentimos o espichão do pescoço. Paro na sinaleira, fortuitamente olho para o meio fio e lá está: quanto amor estacionado entre a calçada e a vala. Todos os carros do mundo de fundo cinza metálico são o mesmo carro, são a mesma pessoa. São igualmente amados por amor de mulher. E há que protegê-los, de um esbarrão qualquer, de uma falta de vagas. Transitam pela cidade levando de um lado a outro sua saudade, o cheiro daquele encontro, histórias inteiras de tanto segredo transportadas em quatro rodas, duas portas e nada mais. Sempre o seguimos, pelo menos até a esquina ciumenta esconder ele para sempre. Para sempre naqueles 15 minutos. Porque em todo lugar que vamos, na frente do supermercado, na praia, até na farmácia por um analgésico. Sempre você, de fundos arredondados, pneus bem encaixados. Sempre o mesmo frio na barriga. Toda mulher sabe o que é se apaixonar por um carro. Por um carro assim você.

domingo, 3 de maio de 2009

Tardes


Eu nem me lembro que horas eram porque as horas nem quiseram dizer nada. A graça era se perder no tempo. Meus olhos espalmavam feito folha de coqueiro e quanto mar havia, dentro e na beira de mim. Deitei meus pés sobre a areia e, naquele momento, minha alma era carinho para o mundo. Tão misturada estava que até meu fôlego tinha a pulsação da tarde. Foi a primeira vez que senti um silêncio que dança. Porque nada fazia movimentos bruscos, mas meus cabelos rodopiavam, anunciando a música que havia em mim. Deitei, para respirar na terra feito criança que se despoja no peito do pai. Derreti. Esqueci. Dormi. Senti tanta paz que eu parecia me dissolver no dia. Éramos eu e a tarde uma coisa só. Nunca mais tinha visto tudo em mim com tanta liberdade, em tanta sintonia, parecia que eu docemente me alargava, ganhando a extensão do universo. Nascer de parto normal deve ser assim - pensei assustada. Como ser acordado bruscamente de um sonho vespertino. E ter, por um instante, a estranha sensação de ter se desgarrado do mundo.

Dos dias de inverno

O bom da chuva é essa saudade que sobe junto com o cheiro quente de chão molhado. É o hálito amoroso da natureza. Me acalmo só em sentir chuva do lado de dentro. Me alegra ver as pessoas passarem tão vagarosas quanto o próprio dia, tão quietas como tudo lá fora. No frio todo mundo se esconde, fingindo que o dia é só seu. Mas não. Não se deve cometer o erro grave de querer que tudo se aqueça. Para que? A graça é sentir chuva sem se molhar, é precisar de um calor que é tão particular e que pode lhe vir por um sorriso nos olhos, por um encontro de mãos, por linhas de um capítulo, por gomas de açúcar, barulho de poças. Se não fosse a chuva, tão pouco despencaria uma torrente de vontades. E de auto-gentilezas. Que confidência é a chuva em casas de cobertor. Que confeito é o chuvisco em meios de semana. Como descrever a incrível sensação de pé gelado em lençol gelado e uma alma deliberadamente espaçosa, de largos sorrisos, embora embrulhada aos joelhos em um canto quente da cama.

Descalços.



Sabem-se feios. E é só. (Uma daquelas coisas que nos contam). Em todo o resto do tempo, têm em si uma singeleza e uma vontade de viver tão grande que não podem se ocupar de mais nada. E são tão admiráveis. Sempre tiveram muito mais coragem do que eu, e em sua estranheza tocaram firmes a beleza do mundo. Sempre os vi assim: sedentos de sentir. A frieza da chuva, a maciez da grama, a dureza do chão, o morno da pele, a noite condensada na rocha, o vento, o espalhado de água. Vez ou outra sorriem mergulhados em areia branca - só eu percebo. Sempre quiseram andar assim, sem nenhuma veste, nus e arredios a vida inteira. Quanto os invejo. Porque se têm uma capa grossa é porque escolheram desde cedo enfrentar o gosto da terra, fizesse cócegas ou fervuras. A capa foi só uma proteção que a vida lhes deu, porque decidiram nunca tê-la para com a vida. Que inveja sinto dos meus pés. E quanto amor há em seu aspecto distraído, como uma criança despreocupada. Tão cheios de talhos, por vezes secos como o chão, mas de tanta poesia. Amo-os com paixão e deixo que sejam com liberdade. Mas apesar de tanto querer e tanto desembaraço em viver, há muito não recebem carinho. Esquivam-se. Tudo porque é o único momento em que lembram-se feios. E é só. De todo o resto se perdem em sua beleza infinita misturados às texturas da natureza. E doam-se, ao mesmo tempo em que se encarregam de sentir o mundo pra mim.

Meu Celular (um texto que mais dias, menos dias, vai ser extinto)

Cismo com meu celular. Somente porque ele tem vontade própria. Ele podia ser um mero respeitador de outras vontades, da vontade de quem não manda na vontade e quer falar, na vontade de quem espera outra vontade para finalmente ouvir. Mas não. Ele quer ser ele. E eu não gosto quando nos momentos em que mais preciso, de uma emergência que podia ser policial, mas é delicadamente doméstica, ele simplesmente não funciona para me convencer a usar a paciência. Nem quando eu estou precisando encontrar minhas respostas, em uma angústia desmedida, e ele está fora da área pela simples cumplicidade de me deixar só. Eu preferia que ele não se metesse. Porque hoje, por exemplo, eu estou com essa falta, com essa saudade enorme de alguém que não sei quem é. Chego até a chorar muda, caminhando pela casa, porque não se sabe nem por quem sinto tanto. E não dá para se despedir, nem para pedir pra voltar e dá um medo de perder. Estou assim desde de manhã, um dia todo avesso, como se eu tivesse vestido uma roupa esquisita, desconfortável. Horas me apertando o peito, horas a cabeça. E justo agora nessa falta de ninguém, ele não liga e fica como eu: “procurando”. Não me deixa falar com qualquer um e me obriga a dissipar o amor pelo canal da intuição, da lembrança, do afeto que vem tão junto da memória. Eu queria poder dizer isso a alguém, contar do meu doído, mas não posso, porque sua personalidade também é forte demais. Seguimos em silêncio, eu e ele. Eu com um pouco mais de vantagem, porque tenho as linhas e com elas também escorro, escapo. Mas ele fica ali na ponta, irredutível, frisando essa ausência que pode até ser de mim.
Bem queria que ele fosse só um celular.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Pré-cirurgia - carta a ela.

Ah, amiga, não se assuste. Estamos sempre nos despedindo, nos deixando de alguma forma. E sim, claro, às vezes largamos os quilos pelo caminho. De preocupação, de maus vividos dias. Quantas vezes, amiga, secamos, finalmente, de tantos costumes que nos pesavam, de tantos medos na borda da alma. E nos damos a feliz oportunidade de nos refazer. De experimentar a roupa folgada da liberdade, da permissão para simplesmente ser. Vai, amiga, porque é natural. Aqui fora nossa cirurgia nem sequer tem anestesia, vai sendo arrebatada pelos dias. Vai, moça, para nascer outra, para viver outra. Mostra para o mundo que você também aprendeu a deixar de ser você. Porque quer ser ainda mais. (Veja que para ser alguém verdadeiro é preciso, antes de tudo, não estar certo de quem se é. ) E na volta me ensina, amiga, com seu pouco peso e com sua cara nova, que para mudar é preciso muito de coragem e bem pouco de apego.